domingo, 23 de fevereiro de 2014

Cildo Meireles revê seus 50 anos de arte política e poética


  • Compartilhado do Globo / Cultura
  • Depois de ter retrospectivas nos museus Reina Sofía e Serralves em 2013, artista que é tido como um dos principais do país ganha livro sobre sua obra

O artista abriga em seu ateliê, em Botafogo, as caixas com as obras que mostrou na Europa no ano passado
Foto: Fabio Seixo
O artista abriga em seu ateliê, em Botafogo, as caixas com as obras que mostrou na Europa no ano passado Fabio Seixo
RIO - São dez da manhã da última quinta-feira, e Cildo Meireles busca carimbos numa das muitas estantes de seu ateliê, uma casa de pé-direito alto onde trabalha há 13 anos, em Botafogo. Ele volta à imensa mesa e, entre uma confusão de recortes, livros, e-mails impressos e documentos, distribui cédulas de R$ 2, R$ 5 e R$ 10. Começa a marcar as notas com os carimbos de perguntas: “Cadê Amarildo?” ou “Por que Toninho do PT foi assassinado?”. Naquela ação que executa de forma tão natural, o artista prolonga um gesto antigo, de 1975, quando, pela primeira vez, carimbou uma cédula — então de cruzeiro — com uma provocação à ditadura: “Quem matou Herzog?”.
Aos 66 anos, o artista tricolor, pai de dois botafoguenses, casado, ex-fumante (desde que pôs cinco pontes de safena, em 2012), vez ou outra carimba algumas cédulas de real (estas com questões perturbadoras mais recentes) e as usa para comprar algo em lojas perto de casa, também em Botafogo, vizinha ao ateliê — para onde vai a pé diariamente, com suas habituais sandálias e bermudas.
— Tenho ojeriza por arte panfletária. Mas em última análise qualquer trabalho é político — afirma o artista.
A instância política, de fato, permeia sua obra e, por consequência, o livro que revê seus 50 anos de carreira. “Cildo Meireles”, coeditado pela Cosac Naify e pela Fundação Serralves, chega às livrarias em 10 de março e reproduz obras desde meados dos anos 1960 até 2013, quando o artista ganhou retrospectivas nos museus Reina Sofía, na Espanha, e Serralves, em Portugal. Também em março, a partir do dia 26, ele abre uma individual em Milão, no Hangar Bicocca, com 12 instalações.
Distante dos museus do país
Primeiro artista brasileiro a ganhar uma individual na Tate Modern, em Londres (em 2008), e um dos primeiros a expor no MoMA, em Nova York (em 1970), Cildo começou sua trajetória no desenho, quando ainda criança se mudou do Rio para Brasília e passou a estudar com o pintor peruano Félix Barrenechea. Nos anos 1970, de volta ao Rio, passou às “Inserções em circuitos ideológicos” (como as cédulas carimbadas ou as célebres garrafas de Coca-Cola com textos como “Yankees go home!”) e, em seguida, às instalações. Uma das primeiras é “Desvio para o vermelho”, planejada em 1970 e montada pela primeira vez só em 1984 (no Museu de Arte Moderna do Rio). Muitos de seus projetos demoram para sair do papel ou são perenes.
Não tardou para que críticos e curadores o cotassem como um dos principais artistas do país. Cildo ganhou projeção internacional — ainda nos anos 1970, participou da Bienal de Veneza e, depois, de edições da Bienal de São Paulo e da Documenta de Kassel. Aqui, porém, exposições institucionais de suas obras são raridade. Se em São Paulo ele encerra hoje a mostra de uma instalação no Centro Universitário Maria Antonia, em que distorce a arquitetura de uma sala, no Rio sua última grande exibição foi em 2005 — com desenhos, no CCBB. Já suas instalações, que são seu trabalho mais significativo, ganharam uma exposição na cidade há quase 15 anos, no MAM.
— Quando foi a última mostra que fiz aqui? Nem me lembro — diz Cildo, que tem o mesmo assistente, Rubens, desde os anos 1990. — Uma vez, conversando com o (artista americano) Chris Burden, perguntei por que ele não mostrava no Brasil. Ele falou: “Porque não me convidam”. É um pouco por aí. Não me convidam. São Paulo tem mais lugares e mais recursos. Aqui no Rio você tem o quê? CCBB... (“O MAM?”, pergunta a repórter). O MAM, poxa... Minha relação com o MAM é sentimental, não pode ser levada a sério (ele foi um dos fundadores da Unidade Experimental do museu, em 1969). O MAM não tem recursos, anda sempre de pires na mão e raramente pinga alguma coisa substantiva, que dê para montar um programa de fato.
Boa parte das obras expostas na Europa está de volta ao ateliê, mas não há previsão de elas serem vistas por aqui. Cildo diz que não procura instituições para propor mostras:
— É um pouco a história de homem e mulher: a primeira metade da vida, você passa correndo atrás de mulheres; depois, corre delas! (risos). Eu não vou buscar editais, acho até sacanagem. Esse espaço é importante para os que estão começando, se não ficam sempre os mesmos nomes, uma coisa repetitiva.
Influência para gerações seguintes
“Os que estão começando”, como diz Cildo, não escaparam de sua influência. Quando ainda era estudante de pintura, em 2000, Thiago Rocha Pitta viu a mostra do artista no MAM do Rio.
— Os trabalhos implicavam um contato corporal muito forte. Percebiam-se não só com os olhos, mas com a razão. Aquilo para mim era uma descoberta — diz Pitta, lembrando que sua primeira obra, “Abismo sobre abismo” (2001), foi influência de Cildo.
O curador e crítico Lorenzo Mammì cita Nuno Ramos, que, segundo ele, “confessa uma ascendência direta” do artista. Ele diz ainda que há “elementos da arte de Cildo em quase todos os artistas das gerações seguintes, como o uso das alegorias ou o uso estridente de materiais”.
— Cildo tem ligação muito forte com Hélio Oiticica, mas tornando o que nele era exótico algo mais sofrido. Ele trabalha sobre as falhas, fissuras, contradições, os pontos doloridos da forma. Para Cildo, a arte é uma coisa dura, às vezes incômoda, que põe o dedo na ferida. Ele tem uma habilidade particular de encontrar esse desencontro da forma e do mundo.
Cildo também não teme o desconforto em seu discurso. Aponta falhas de museus, bem como de projetos de governo, como o polêmico decreto do Ibram que permite ao instituto de museus inspecionar obras em coleções privadas (“É apenas extensão do controle do governo, os caras querem botar as patas lá”, diz). Ele conta que viu as manifestações que se alastraram pelo país como boas no início e perdidas em seguida. O que pode fazer o artista nesse contexto?
— Se esconder das balas! — diz, rindo. — E, ao mesmo tempo, não se pode fugir. Isso se impõe. É o mais perverso desse processo. Coisas que você sabe que são deploráveis acabam ocupando um tempo muito grande na vida. Em vez de usar essa energia para fazer coisas que você deveria fazer enquanto artista, pesquisar, expandir os campos de percepção e compreensão, você tem que usar para tentar entender essa grande merda que se tornou a vida cotidiana.
O crítico Frederico Morais diz que, embora Cildo seja seu melhor amigo, os dois têm “suas divergências”:
— Acho o trabalho dele político, mas ele recusa com muita veemência que sua obra nasce política. Diz que algumas tornam-se políticas, mas que ele não se propõe a fazer ação política.
Sem celular e o hábito de acessar e-mails (“Eles são abertos para mim três vezes por semana”), Cildo em alguma medida preserva do mundo prático seu ofício — que ele define poeticamente:
— A arte é uma espécie de inutilidade indispensável
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