terça-feira, 27 de agosto de 2013

Sara Wookey,

Carta Aberta de uma Bailarina que se Recusou a Participar na Performance de Marina Abramović no MOCA




Sara Wookey, carta publicada a 23 de novembro de 2011.

Sara Wookey executando “Trio A” (1966) de Yvonne Rainer no Festival performático VIVA!, em Montreal. Foto de Guy L’Heureux

No dia 7 de novembro, participei numa audição para a produção da artista performática Marina Abramović no âmbito da gala anual do Museu de Arte Contemporânea (Museum of Contemporary Art ou MOCA) de Los Angeles. Eu quis fazer a audição, porque queria participar no projeto de uma artista, cujo trabalho acompanhei com interesse durante vários anos e porque se tratava de um projeto do MOCA, uma instituição à qual estou ligada enquanto artista residente em Los Angeles. De entre as cerca de 800 candidaturas, fui uma das duzentas selecionadas para a audição. Acabou por me ser proposto o papel de uma das seis mulheres nuas que reencenariam a obra emblemática de Abramović, “Nude with Skeleton” (2002), no centro das mesas, com lugares a chegar aos 100.000 dólares cada. Recusei pelas razões que aqui explano, razões que, acredito, têm de ser tornadas públicas.
Escrevo para abordar três pontos essenciais:
- Primeiro, para juntar a minha voz ao discurso em torno deste evento como artista que criticou a experiência e decidiu afastar-se; uma voz que, eu sinto, tem estado por demais ausente da cobertura dada pelo LA Times e o New York Times.
- Segundo, para clarificar a minha identidade como fonte de informação das condições que são pedidas aos artistas e explicitar o porquê de eu ter optado, até agora, por permanecer no anonimato relativamente ao meu e-mail para a Yvonne Rainer.
- E, terceiro, para alavancar uma mudança no pensamento dos trabalhadores da cultura, considerando o impacto em toda a linha, a curto e a longo prazo, das nossas escolhas pessoais, quer ao aceitar quer ao recusar qualquer tipo de trabalho.
Cada ponto visa apoiar o meu interesse preponderante na organização e formação de um sindicato que assegure padrões laborais e salários justos para os artistas performativos e de belas-artes, dentro e fora de Los Angeles.
Recusei participar enquanto performer porque o que se me afigurou foram algumas horas de trabalho criativo, uma refeição e a possibilidade de estabelecer contatos com outros colegas na mesma linha de ideias e isso resultava num trabalho mal pago. Seria suposto eu ficar ali nua e muda numa mesa em rotação lenta, começando ainda antes de os visitantes chegarem e ficando até depois de eles terem saído (um total de cerca de quatro horas). Seria suposto eu ignorar (permanecendo naquilo a que Abramović chama “modo performático”) qualquer potencial assédio físico ou verbal durante a atuação/exposição. Seria suposto eu comprometer-me com quinze horas de ensaio e assinar um contrato de confidencialidade, onde se dispunha que se eu falasse a alguém do que sucedera na audição seria processada pela Bounce Events, Marketing, Inc., a produtora do evento, no pagamento de um milhão de dólares além das despesas com os advogados.
Eu receberia 150 dólares como remuneração. Durante a audição, não houve qualquer referência a segurança, letreiros ou sinais indicando perigos para os artistas, e quando perguntei qual o tipo de proteção que nos seria dado, responderam-me não nos poderem garantir proteção. Enquanto candidata na audição para este trabalho, tive uma experiência extremamente problemática, potencialmente abusiva e de exploração.
Sou bailarina e coreógrafa profissional, com 16 anos de experiência nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa. Tenho um Mestrado em Dança (Belas-Artes) da Universidade da Califórnia, Los Angeles. Enquanto artista profissional a trabalhar para ganhar a vida, na classe média de Los Angeles, sinto-me ultrajada que não existam medidas práticas padronizadas, oficiais ou não, para as condições de trabalho e os benefícios para artistas e performers, ou para as relações entre criador, executante, local de apresentação e produtora, sobretudo quando concerne a indivíduos e instituições tão respeitados e profissionalizados como é o caso de Abramović e do MOCA. Já produzi mais de uma dúzia de trabalhos performáticos, na Europa, com elencos de 15 a 20 artistas. Ao contratar bailarinos, estava obrigada a respeitar uma tabela de remunerações nacional, acordada em base sindicalista, conforme o número de anos de experiência de cada artista. No Canadá, onde executei recentemente uma obra de outro artista, recebi 350 dólares por umaperformance de 15 minutos, não incluindo o tempo de ensaio que foi pago em separado, até um total de 35 horas, em conformidade com as normas estipuladas pela CARFAC (Canadian Artists Representation/Le Front Des Artistes Canadiens), criada em 1968.
Se o meu apelo para a criação de normas laborais para artistas parece estapafúrdio, pense-se na associação dos atores de cinema (Screen Actors Guild ou SAG, criada em 1933), na federação americana dos músicos (American Federation of Musicians ou AFM, fundada em 1896) ou na organização de cúpula dos atores e artistas associados da América (Associated Actors and Artistes of America ou 4As, fundada em 1919), que vinculam as indústrias do cinema, teatro e música a padrões de regulamentação e boas práticas para os artistas e entertainers comercialmente ativos. Se existe algum grupo de trabalhadores da cultura que merece normas básicas de trabalho, somos nós,performers, que trabalhamos em museus, cujos instrumentos são os nossos corpos e merecemos respeito e um tratamento humano. Os artistas de todas as áreas merecem um tratamento justo e igualitário e podemos organizar-nos, se nos preocuparmos o suficiente para nos empenharmos. Prefiro dar a cara como a artista franca do que ser a cabeça silenciada, a rodar lentamente (ou, pior ainda, o “arranjo”) no centro da mesa. Quero uma voz, alto e bom som.
Abramović convocou artistas, segundo citou o LA Times, que fossem “tipos fortes e silenciosos”. Sou seguramente forte mas não me conformo com o silêncio nesta situação. Recuso-me ser uma artista silenciosa em assuntos que afetem o meu modo de subsistência e a cultura da minha prática. Há assuntos demasiado importantes para serem silenciados e apenas calho a ser eu a denunciar e a romper o silêncio. Falo em resposta à ética, não ao material ou conteúdo artístico, e sei que não sou a única a sentir o que sinto.
Recusei a oferta de trabalhar com a Abramović e o MOCA (para participar na perpetuação de práticas laborais pouco éticas, exploradoras e discriminatórias) tendo em mente a minha comunidade. Impulsionou-me a trabalhar a favor da criação de normas éticas, direitos laborais e pagamento equitativo para artistas, especialmente bailarinos, que tendem a ser dos artistas mais mal pagos.
Chegou a altura de os artistas de Los Angeles e de todo o mundo se unirem, organizarem e trabalharem para alterarem as discrepâncias degeneradas entre os fundadores ricos e poderosos da arte e os artistas, essencialmente pobres, que estão ao seu serviço e de quem é esperado que propiciem o chamado conteúdo avant-garde, presciente ou “entretenimento”, como é cada vez mais o caso; e que é, afinal de contas, o merchandising ao serviço do dinheiro. Temos de fazer isto, não por causa do que aconteceu no MOCA, mas como resposta a uma necessidade maior (dolorosamente demonstrada nos eventos do MOCA) de equidade e justiça para os trabalhadores da cultura.
Não julgo os meus colegas que aceitaram papéis neste trabalho e eu própria sou vulnerável ao culto do carisma em torno dos artistas que são celebridades. Julgo, antes, as atuais condições sociais, culturais e económicas que fizeram com que se tornasse normal, natural e até horrivelmente banal a exploração dos trabalhadores da cultura, quer seja perpetrada por entidades como o MOCA e Abramović ou autoimposta pelos próprios artistas.
Quero sugerir um outro modo de pensar: quando nós, enquanto artistas, aceitamos ou rejeitamos trabalho, quando participamos na realização de uma obra, mesmo (ou até especialmente) quando não é de nossa autoria, contribuímos para o estabelecimento de padrões e precedentes para a nossa classe e todos os que se nos seguirem.
Em suma, estou grata a Rainer por utilizar a sua posição (sem que eu tenha tido de lhe pedir) de autoridade cultural e respeitabilidade para tornar públicos estes problemas, para que fosse lançado um debate há tanto tempo adiado. Jeffrey Deitch, diretor do MOCA, foi citado no LA Times como tendo dito, em resposta ao e-mail que eu enviei anonimamente e à carta de Rainer, que “A arte versa o diálogo”. Embora eu concorde com ele, a ideia que Deitch tem do diálogo nesta matéria não passa de um paliativo. Pois só obscurantiza uma situação de injustiça, na qual tanto a artista como a instituição provaram ser irresponsáveis ao recusarem reconhecer que a arte não está imune a padrões éticos. Tentemos um novo discurso que comece neste pensamento.

Sara Wookey (www.sarawookey.com) é artista, coreógrafa e consultora criativa, residente em Los Angeles.

[tradução do inglês por Susana Canhoto]



© 2013 eRevista Performatus e o autor

Arte fora da moda

VLADIMIR SAFATLE

"Quando um amigo estilista se denomina artista, eu sempre lhe pergunto: Como assim? Você parou de desenhar vestidos?'." Essa é uma das frases de Karl Lagerfeld, que tem ao menos a virtude de possuir um cinismo capaz de se voltar contra os arroubos de sua própria profissão.
Seria bom que alguém no Ministério da Cultura tivesse lembrado dela antes de permitir que desfiles de modas fossem autorizados a captar R$ 2,8 milhões por meio da Lei Rouanet.
Claro que haverá sempre os que afirmarão que moda é cultura, já que é expressão da criatividade de um povo em sua produção simbólica. Mas, seguindo essa noção demasiado larga e pouco operacional de cultura, teríamos que colocar no mesmo conjunto a culinária, a publicidade e até mesmo o jornalismo.
Sendo assim, por que não usar as leis de incentivo cultural para financiar agências de publicidade, restaurantes glamourosos e jornais?
Se um desfile de moda pode, uma agência de publicidade formada por "criativos" teria o mesmo direito. No entanto, se for para assumir tal lógica, melhor seria transformar o Ministério da Cultura em uma "secretaria especial de produção de glamour e de gestão da economia criativa", ligada ao Ministério da Indústria e Comércio. Ao menos seria mais barato para o contribuinte.
Essa descoberta recente da possível natureza artística da moda nos leva a perguntar se não haveria um equívoco maior referente às políticas culturais aplicadas por uma certa esquerda.
Presa entre exigências genéricas de integração social e o fascínio pelo uso econômico do conceito de cultura, ela acabou por aprisionar os debates sobre cultura às planilhas de economistas que louvam a força do "imaterial" e ao bom coração das ONGs, com seus discursos de assistência social.
Há de perguntar se uma política cultural não estaria mais bem assistida se estivesse focada na multiplicação de equipamentos de formação para a cultura, assim como na defesa daquela produção artística que tem dificuldade em circular por não fazer parte dos circuitos da rentabilização financeira e da indústria do entretenimento.
Pois talvez seja a hora de perguntar, depois de tanto tempo, quantos conservatórios foram abertos, quantos polos de cinema foram criados, quantas escolas de artes visuais existem hoje em nossas periferias frutos de políticas federais.
O mais engraçado nisso tudo é que lembrar disso será considerado, por alguns, "elitista". Em minha época, "elitista" era financiar desfiles de moda em Paris com dinheiro público.