É possível formar hoje um artista que se possa conceituar como contemporâneo?
TextoAnna Bella Geiger, Fernando Cocchiaralle, Marcelo Campos
Professores do Programa Aprofundamento EAV
É interessante observar que concepções, propostas e métodos concernentes ao ensino da arte e à formação do artista, surgidos profusamente a partir do pós-guerra (1945), ainda coexistem atualmente. Tal coexistência evidencia que a situação atual destas pedagogias configura a busca de alternativas para avançar no enfrentamento de um mesmo e único desafio: é possível formar hoje um artista que se possa conceituar como contemporâneo?
Para acercarmo-nos dessa questão faremos um breve recuo histórico, necessário apenas para a inscrição de algumas ideias didático-pedagógicas (que vimos experimentando tanto nas experiências de cada um, quanto em nossa prática conjunta, durante o Curso de Aprofundamento dos anos de 2012 e 2013 da Escola de Artes Visuais do Parque Lage) num contexto atual, divergente de outros, próximos ou distantes, que o precederam.
A função e a finalidade da arte ocidental mudaram algumas vezes nos últimos seiscentos anos. A produção de imagens feitas apenas sob encomenda, destinadas unicamente ao cultoreligioso e à devoção dos fiéis, feita por artífices predominou até o começo do século XV quando deu, pouco a pouco, lugar à produção de obras voltadas à contemplação estética(faculdade imprecisa, mas necessária ao mundo burguês), criadas por artistas, num modelo consolidado entre a Renascença e o clímax do Iluminismo na segunda metade do século XVIII e atualizada, cem anos mais tarde, pela arte moderna.
A partir do pós-guerra, em 1945, até a passagem dos anos 50 para os 60 do século passado, a produção artística experimentou uma nova (e até hoje derradeira) mudança funcional: aquela que costumamos chamar de arte contemporânea, em que a contemplação estética deu lugar a propostas espaciais e conceituais produzidas pelos artistas (a partir de novas mídias e suportes anteriormente estranhos à produção artística), voltadas para a participação direta ou semântica do observador (mesmo quando ainda se tratam de obras).
A essas inflexões contextuais do sentido da produção artística e de sua destinação social corresponderam, ao longo dos seis séculos que delinearam o período histórico mencionado, diferentes modos de qualificar o artífice medieval/renascentista e posteriormente o artista (séculos XVIII, XIX e XX).
Como eram qualificados tecnicamente esses produtores visuais? O artífice era treinado desde a adolescência, por meio da prática diária (como a moagem e preparação de pigmentos, a pintura de fundos dos quadros, até assumir a coordenação da produção das obras), orientada por mestres de oficinas específicas − pintores, escultores, etc. Seu aprendizado era de longuíssima duração. Mas a partir do século XVII, ainda sob a égide de monarquias, como a francesa, as Academias de Arte tornaram-se indispensáveis à formação do novo artista
Elas padronizavam o ensino das artes e ofícios por meio de currículos cujos conteúdos podiam ser examinados e alterados conforme as necessidades do poder. A formação artística passou a ser entendida do ponto de vista politécnico-curricular de todas as academias de belas-artes.
A ascensão da burguesia determinou o nascimento da figura do artista, tal como a entendemos até hoje. Com o arrefecimento do vínculo da encomenda, o artista passou a ter mais autonomia criativa. Ao mesmo tempo, esse sujeito, criador de um estilo pessoal (noção também definida no século XVIII), passou a ser responsável pela invenção das condições formais que iriam determinar um novo campo próprio exclusivo das artes plásticas. Com isso foram criados os salões de arte, os museus e as instituições para acolherem e exibirem resultados de invenções autônomas, individuais e originais exigidas como práticas da distinção e da autoria individual.
Em consonância com essas novas ideias, comprometidas com transformações sócioeconômicas e políticas ocorridas na Europa a partir da segunda metade do século XVIII, a produção artística moderna (final do século XIX) também propôs mudanças no âmbito da formação do artista visual. As vanguardas artísticas varreram os últimos traços oficinaislegados pela Antiguidade, em nome de um novo conceito: o da criatividade. Em lugar do ensino técnico, exercícios que estimulavam a invenção formal resultante de processos criativos. O homem moderno tornar-se-ia um ser criativo formado por meio de preceitos iniciáticos, eruditos e políticos da burguesia. Para esclarecer esse foco nas práticas criativas, podemos lançar mão, à guisa de exemplo, do que Merleau-Ponty chamou, na introdução de O olho e o espírito, de “lençol de sentido bruto” − cuja existência precederia a separação entre conhecimento letrado (razão) e a sensibilidade.
De acordo com essa vertente, a pintura (e, por extensão nossa, a arte) se nutriria de um estado bruto de expressão (análogo ao “lençol de sentido bruto” merleau-pontyano), observável nos loucos, nas crianças, nos primitivos, etc. A chamada autoexpressão distinguia-se, então, daquela do artista, posto que permanecia imersa nas vivências ou nos limites genético-etários, aquém das conquistas técnico-intelectuais do verdadeiro artista, único capaz de transitar entre razão e sensibilidade. A autoexpressão referenciou, ainda assim, uma série de ideias artísticas como a do automatismo psíquico, instrumentalizada, por exemplo, no surrealismo e também na action painting de Jackson Pollock.
Contribuíram, para a emergência dessas novas ideias artísticas os conhecimentos antropológicos e a expansão imperialista europeia, acelerada em fins do século XIX, em que se ampliaram as condições de observação de outros lugares e de outras formas de visualidade como o orientalismo, o primitivismo e a estética decadentista que questionavam a racionalidade colonizadora.
As academias de arte no século XX foram desafiadas nos seus modelos engessados de ensino. Por um lado, tiveram de enfrentar a problematização geográfica, pois a arte ensinada nas academias partia de conceitos e modelos pautados pela Europa, principalmente pela França a partir dos domínios da história da arte ocidental. Em outra medida, tratava-se de garantir resultados estilísticos (totalmente concentrados na invenção formal, em detrimento dos temas abordados).
Coube, então, ao artista, não sucumbir a essa dualidade entre erudição e autoexpressão, observando modos de tomar posse, isto é, de dominar seu pensamento para, assim, poder transformá-lo, além da superação de seus efeitos ampliados, imaginando e resolvendo axiomas como o de Joseph Beuys ao afirmar: “todo ser humano é um artista”.
Em que o aqui exposto difere do que exercemos hoje, nessa experiência específica da Escola de Artes Visuais do Parque Lage?
1. Estamos falando de estimular processos por meio de encontros e de discussões suscitadas por nós e pelos estudantes sem programas pedagógicos de ensino da arte preestabelecidos
2. Observamos que esta opção torna-se mais complexa e rigorosa em razão da multiplicidade de indagações, das complexas trocas surgidas durante este processo. Ali, discutimos propostas trazidas pelos estudantes (nem sempre necessariamente válidas) que possam apontar caminhos possíveis.
3. Nossos julgamentos vão se construindo com uma necessária e mesmo urgente confrontação com exemplos históricos, destacando referências que contribuam para uma maior reflexão poética em torno dos trabalhos (poética entendida, sobretudo, como o âmbito das questões intencionalmente trabalhadas por um artista).
4. Nossa análise, a todo instante, nos leva a discursos, ainda não totalmente formulados pelos estudantes de arte, que se tornam desafios para o reconhecimento dessas propostas ainda não claramente explicitadas.
5. Nossa atuação difere, portanto, daquelas praticadas em ateliês, onde comumente se acompanham resultados e soluções de ordem técnico-material quase sempre em detrimento dos processos.
O filósofo francês Jacques Rancière incita-nos a ensinar o que ignoramos. O perfil do “aprofundamento” pode ser remetido a essa ideia, posto que não é oficinal, mas voltado para a atual pluralidade da produção artística (e não apenas para o domínio de um meio técnico ou para o aprimoramento de um ofício específico). Em contrapartida privilegiamos como método de trabalho a reflexão sobre a experiência processual (individual e coletiva) dos alunos pensada de um ponto de vista analítico − portanto não prescritivo dos desdobramentos processuais dos trabalhos de cada aluno – tanto por meio de seu debate crítico nas aulas, quanto por seu desdobramento nas aulas teóricas e palestras que pontuam a dinâmica docurso.
A seleção dos alunos norteia-se, por conseguinte, não só pela qualidade dos portfólios, como também (e sobretudo) pelo sentido poético dos processos investidos em suas propostas e questões – norte que se mantém ao longo do curso propriamente e consuma-se (este é o nosso objetivo) na consolidação de uma consciência crítica e autocrítica por parte de seus integrantes. Essa tem sido a nossa compreensão do sentido do curso que se adensa a cada turma, para enfrentamento da crise nos atuais modelos de ensino e de certa formação do artista.