Chega ao Museu de Arte Moderna, no Rio, em março,
a mostra do artista que ocupou a Fundação Cartier, em Paris
Texto
Alexandre Sá
Professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage
Recentemente conversando com uma curadora francesa “supercontemporânea”, comentei com animação, e obviamente de propósito, que estava interessado em escrever um texto sobre a exposição irretocavelmente bem-montada de Ron Mueck que vi na Fundação Cartier em um verão tórrido, após uma tempestade absurda e depois de ter esperado alguns longos e bons minutos na fila, composta de gayspunks, donas de casa, senhorinhas, artistas, pseudoartistas e todo tipo de gente de verdade.
A resposta veio rápida:
- Não gosto muito.
E eu, de maneira descompromissada, como se olhasse para a paisagem, disse:
– É… muita gente também não. Mas… Por que razão você não gosta?
E ela, num golpe rápido, como se igualmente olhasse uma outra paisagem muito própria, respondeu:
– Acho simples. Sem muitas questões.
Embora tenha sido honesta e direta como poucas pessoas pelas terras brasilianas costumam ser, sua reação facial de desinteresse e de um certo cansaço não era nada distante das feições das esculturas de Mueck e se aproximava muitíssimo daquela que fazia a grande maioria dos outros especialistas com os quais resolvi comentar. Achei a semelhança, no mínimo, curiosa.
Como ultimamente decidi fazer aquilo que me dá prazer, inclusive proferir eventuais sinceridades obtusas que eventualmente provocam um ris(c)o afiado, continuei a minha empreitada: tinha um texto para escrever sobre um escultor espetacular que gera uma atitudeblasé por parte de alguns tantos especialistas em arte contemporânea, por não conseguirem encontrar uma infinidade de camadas conceituais. E que, em contrafluxo, provoca uma enorme felicidade no público, que, ao ver tal trabalho, se sente abrigado, querido, feliz e sem enormes pretensões; como se pressentisse que a tal distância que lhe foi imposta ao longo do século XX entre a sua existência e a obra vista estivesse sendo vagarosamente diminuída. Então, apesar da força midiática reverberada do trabalho (herança direta de algum legado debordiano), nada elimina a clara certeza de que estamos ali diante de um trabalho monumental. Monumental nada gótico. Nada religioso. Nada que venha a diminuir a simplicidade da nossa vida ordinária.
Não há ali nenhum pergunta em suspensão, nenhuma dúvida, nenhum questionamento profundo o suficiente para que precisemos escavar zil metros de solo teórico para achar que estamos conseguindo nos aproximar de alguma questão-segurança-corrimão do trabalho. A pergunta: “- Isto é arte?!”, nesse caso, já parece velha, esquecida e quase em preto-e-branco. E, aproveitando a veia necrófila da própria história da arte “mausoleológica”, se Duchamp, em conversa com Brancusi, dissera em uma época longínqua que a arte jamais seria capaz de produzir um objeto tão perfeito quanto uma hélice, hoje, embora já saibamos que as artes visuais jamais conseguirão tocar uma área da subjetividade tão específica e arrebatadora quanto aquela que a música é capaz de tocar, estamos todos (artistas, críticos e produtores) tomando consciência de que o cérebro puro e não-simples, como eixo pontual em que a experiência estética achou um dia que podia residir, já não é mais inseguro o suficiente para dar conta de todas as transformações e transmutações do agora. E apesar da atmosfera árcade que tal insinuação possa acender, talvez um retorno ao público seja já mais que esperado. E, embora saibamos que a lógica de funcionamento do sistema de arte não se interessa e jamais se interessará por tais realidades cotidianas comuns (que apenas vão aos museus e eventualmente abrem o caderno de cultura do jornal como que por acaso), por seguir regras outras que não atravessam o prazer plástico/poético/espiritual, eventualmente surgem possibilidades de convívio de tais vertentes que merecem atenção. Ron Mueck é uma delas.
Antes de continuar (para ser justo e não ser castigado por eventuais Ku Klux Klans editoras e produtores de eventos), é importante deixar claro que cada vez mais me sinto impelido a pensar assim, mais pressupostamente livre e neorromântico. Talvez fazendo o exercício ignóbil e ingênuo de me colocar no lugar do outro, o público; com alguma atitude desinteressada//utópica. Apesar disso, paradoxalmente, um outro de mim, um duplo-sarcástico de óculos com armações ousadas, continua a defender que arte mereça ser, cada vez mais, algo remoto e estrangeiro ao conhecimento comum, inclusive para poder, com mais presteza, inflacionar minha força de trabalho crítica. Esta persona minha que optou por tirar férias neste texto escreve com o pé nas costas e, se quiser, faz-se completamente incompreensível e respeitável; afinal, foi treinado para isto. De qualquer forma, resolvi, só por hoje, como nos narcóticos anônimos, deixá-lo de lado.
Retornando ao Mueck, embora talvez jamais tenhamos nos afastado dele, a história é já sabida: o moço trabalhou no começo da carreira na tv e no cinema, preparando esculturas e pequenas marionetes, e, num golpe de sorte que jamais aboliu o acaso, ajudou sua sogra a criar pequenas figuras para um quadro que estava sendo produzido. A habilidade inquestionável fez que ela o apresentasse a Charles Saatchi, que, por sua vez, também ficou impressionado pela inquestionável habilidade dele. A sequência de fatos é de alguma felicidade conhecida, apesar de poucas vezes considerarmos um pequeno detalhe: ele, a partir do contato com Saatchi, participa da “Sensation”, renomada exposição que alavanca de uma vez por todas a geração de novos artistas ingleses, realizada na Royal Academy of Arts em Londres, de 18 de setembro a 28 de dezembro de 1997.
Todo mundo sabe que todo mundo sabe do furor que tal exposição provocou. Estávamos no final dos anos 90 e nada mais justo do que um giro potente o suficiente para trazer algum contraste a uma década eventualmente colorida por tons pastéis. Economicamente também era muito interessante que Londres marcasse seu espaço político por meio de uma insuspeitável qualidade artística que, de tão contemporânea, se aproximava de alguma incompreensão estupefata, irmã de alguns outros nós poéticos anteriores, que, por sua vez, também provocaram algum obstáculo e desconforto à experiência estética ao longo da história da arte. Para além de tudo isso, o catálogo da exposição, se ignorarmos solenemente os textos e tudo aquilo que subjaz, encontraremos apenas uma página para Ron Mueck (ao contrário de outros artistas-vedete), com a imagem de sua escultura Dead Dad (1996-97), em que, obviamente, encontramos um duplo da imagem de seu pai morto.
É curioso como tal página parece um hiato diante de tanta crueza esfuziante que inevitavelmente esteriliza e torna a dor algo ainda mais atroz. Ali há um silêncio, uma memória e uma poesia que não opta por alocar-se na surpresa da violenta plasticidade do objeto exposto quando espetacular, nem na iconicidade incompreensível do clichê daquilo que (não?) se entendia por arte contemporânea e nem mesmo na angústia de um legado pop que ainda parecia soçobrar. Ainda que tal escultura fosse uma réplica, um outro representado e uma ficção odiosa, a impressão que surge é que, no meio de tantos trabalhos, tantos desejos e tanta política de ponta, Ron Mueck apenas lembrava que a vida estava fora dali e, apesar dos pesares e das escolhas inacessíveis que talvez tenha feito ao longo de sua trajetória, ela, a vida mesma, andava sempre de mãos dadas com a morte, numa relação côncava e convexa, muito simples, quase natural.
Banal mesmo. Sem surpresas. Como um ciclo inelutável que atravessa as eras e que não cria nenhum drama muito cortante que justifique tantos psicotrópicos-psicodélicos. A artificialidade do método tão artesanal e, por paradoxo, industrialmente cenográfico de Mueck parece querer apenas lembrar a naturalidade da natureza-morta-humana (e de sua compaixão inerente; talvez perdida em algum sistema crudelíssimo). E assim o faz em suas personagens em seus banhos de sol, quando observam um corte recém-recebido no corpo negro explorado e explícito, ou quando carregam suas compras e/ou seu bebê (tanto faz, não é mesmo?), e assim por diante. Sem nenhuma novidade. Nenhum sobressalto, nenhum conceito-milagre, nenhuma invenção surpreendente da ciência; como se o tempo da vida fosse o simples fluxo da água que sustenta o rio caudaloso que suporta o barco de nossos nós. Dentro. Ali. Navegando infinitamente. Em silêncio; como o artista tal que pouco fala, e alguns ainda acham que nada diz. Melhor assim.