Pichação é arte
por João Wainer*
  Trabalho como repórter-fotográfico em São Paulo e passo 
o dia todo rodando pelas ruas dessa gigantesca cidade. O 
banco da frente do carro de reportagem é meu escritório. O 
barulho das buzinas dos motoboys, o cheiro de fumaça e os 
congestionamentos fazem parte da minha rotina.
Faz tempo que comecei a prestar atenção às pichações que 
dominam os muros da cidade. Conheci alguns pichadores e 
descobri que existe uma guerra silenciosa na noite 
paulistana. Milhares de jovens disputam os lugares mais 
altos para marcar seu nome ou o de seu grupo. Eles 
escrevem num alfabeto próprio, desenvolvido com 
linguagem e códigos específicos. Ganha a disputa quem 
pichar mais alto, no lugar com maior visibilidade.
  A cada nova história que escutava eu me interessava mais 
pelo assunto. Passei a reparar nas letras, a tentar decifrar 
cada palavra e mensagem como se fosse um quebra-
cabeça. Aos poucos, aquilo que parecia caótico começou a 
fazer sentido para mim. Percebi que aquilo não era tão feio 
como alardeavam. Na verdade, a suposta feiúra da pichação 
até combinava com a paisagem acinzentada de São Paulo. 
O estilo das letras, a forma, o jeito com que elas são escritas 
são lindos. Adoro ver no alto dos prédios aquelas pichações 
enormes, com letras enfumaçadas. Tento imaginar quem 
fez, como fez e o que passou pela cabeça dele enquanto 
fazia.
  Pouca gente sabe, mas o estilo de letras criado pelos 
pichadores de São Paulo é cultuado na Europa. Existem 
livros na Alemanha que tratam exclusivamente da bela grafia 
das pichações paulistanas, com fotos e textos analíticos 
sobre o assunto. Creio que ao lado dos motoboys, os 
pichadores são o que há de mais representativo e 
genuinamente paulistano.
  Além de bonito, o ato de pichar é um efeito colateral do 
sistema. É a devolução, com ódio, de tudo de ruim que foi 
imposto ao jovem da periferia. Muitos garotos tratados como 
marginais nas delegacias, mesmo quando são vítimas, 
ridicularizados em escolas públicas ruins e obrigados a 
viajar num sistema de transporte de péssima qualidade 
devolvem essa raiva na forma de assaltos, seqüestros e 
crimes. O pichador faz isso de uma maneira pacífica. É o 
jeito que ele encontrou de mostrar ao mundo que existe. Os 
jovens da periferia das grandes cidades precisam aprender 
a canalizar esse ódio para atividades não violentas, como o 
rap, o grafite e até mesmo as pichações – que também 
podem ser consideradas um esporte de ação, tamanha a 
descarga de adrenalina que libera em seus praticantes. Ser 
pichador requer ótimo preparo físico para escalar muros e 
prédios, andar por parapeitos com latas de spray e correndo 
o risco de ser pego pela polícia ou por algum morador 
furioso.
  Não é só por isso que considero artísticas as pichações de 
São Paulo. A definição do que éarte tem algo de relativo e 
abstrato. O que é arte para uns, pode não ser para outros. 
Tudo depende das informações que cada um tem, onde e 
como vive, como cresceu e que tipo de formação 
educacional teve. É verdade que a ação dos pichadores 
desagrada e é condenada pela maioria das pessoas que 
vivem em São Paulo. Mas grandes artistas do último século 
usaram a arte para reverter conceitos estabelecidos e 
provocar mudanças de comportamento. Para isso, 
precisaram incomodar o establishment. Toda arte que se 
preze tem de incomodar, causar no espectador algum tipo 
de reação à qual ele não está acostumado. A pichação é um 
bom exemplo de como cumprir bem este papel.
  Não defendo que cada leitor compre uma lata de spray e 
saia pichando seu nome por aí. Apenas tento entender, livre 
de preconceitos, um fenômeno que é visível nos pontos 
mais movimentados da cidade e que faz parte da vida de 
todos que andam por São Paulo. Apichação é o pano de 
fundo da cidade, um detalhe do cenário que combina com a 
cor do asfalto, o cinza dos prédios, o cheiro da fumaça que 
sai do escapamento dos ônibus, o barulho do motor, da 
buzina dos motoboys, da correria...
* Tem 28 anos e é repórter-fotográfico do jornal Folha de S. 
Paulo desde 1996
Fonte: SuperInteressante
 
