quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A linguagem das coisas - Francisco Bosco


Francisco Bosco / texto extraído do O Globo / Cultura
Francisco Bosco escreve às quartas-feiras

A linguagem das coisas

Colunista rebate texto de Ferreira Gullar

sobre arte contemporânea

Colunista Francisco Bosco Segundo Caderno Foto: Arquivo
Colunista Francisco Bosco Segundo CadernoARQUIVO
No domingo retrasado, em sua coluna na “Folha de S.Paulo”, Ferreira Gullar argumentou contra a arte contemporânea, questionando o estatuto de arte das obras de alguns dos artistas tidos como dos mais importantes de nosso tempo. Isso porque, para Gullar, a arte contemporânea é “caracterizada por não ter linguagem” e é, no limite, uma “negação dos valores estéticos”. Considero que o grande poeta está, quanto a isso, bastante equivocado. Selecionarei e comentarei as passagens mais decisivas de sua argumentação, quanto ao ponto que me interessa aqui.
Gullar defende que a arte contemporânea não tem linguagem porque uma obra sua “não nasce da elaboração de signos e formas constitutivos de um universo expressivo, dentro do qual o artista cria”. Entendo que esteja se referindo, quando fala de tais signos e formas, às palavras no “universo expressivo” da literatura, às linhas, formas e cores no da pintura, aos sons no da música etc. Ocorre que, “nesse novo tipo de arte, um mesmo artista poderia propor, como obra sua, casais nus num museu, urubus numa gaiola ou um tubarão cortado ao meio”. Gullar prossegue: “Como não foi ele quem fez os casais, nem os urubus nem o tubarão, a sua obra consiste apenas em uma ideia que lhe ocorreu”.
A alusão acima é clara: refere-se a obras, respectivamente, de Marina Abramovic, Nuno Ramos e Damien Hirst. Para Gullar, então, esses artistas criam obras sem linguagem, porque não empregam, em sua construção, signos (palavras, por exemplo) ou matérias-primas (cores, linhas ou sons), e sim coisas do mundo, objetos pré-existentes, que “não foi ele [o artista] quem fez”. Desse raciocínio, Gullar extrai, numa conclusão cuja lógica me escapa, que uma tal obra sem linguagem “consiste apenas em uma ideia que lhe ocorreu”.
A argumentação é insustentável, a começar pela compreensão dos termos que ela mobiliza, principalmente “linguagem”. Pode-se afirmar que linguagem é um sistema de produção de sentido por meio da relação entre os signos ou elementos que a constituem. Ora, não há razão para não considerar os objetos do mundo como signos por meio dos quais se produz sentido. O corpo humano é (também) um signo. Um urubu e um tubarão são (também) signos. Na performance de Marina Abramovic a que Gullar parece se referir, duas pessoas nuas estreitam a porta de entrada de um espaço exibitivo. Como negar a essa composição a produção de um sentido? Algumas das definições modernas de arte mais fecundas são as de “desvio”, “deslocamento” e “desautomatização” da experiência. O comportamento social humano é ele mesmo uma gramática, com seus signos nos lugares habituais. Colocar duas pessoas nuas em um espaço público e obrigar o visitante a relacionar-se com elas é um desvio da norma, uma desautomatização da experiência.
O mesmo vale para os urubus de Nuno Ramos (colocar um urubu numa obra luminosa de Niemeyer, em meio à euforia de uma Bienal, é criar uma relação produtora de um sentido inesperado) e o tubarão de Hirst (o menos interessante entre os três, a meu ver). Esses artistas usam o mundo como linguagem, usam a linguagem das coisas. Dizer que não foi o artista “quem fez os casais” é um despropósito, pois nunca houve um escritor que tivesse “feito” as palavras, ou um músico, os sons. Talvez também não seja acertado falar em “signos e formas constitutivos de um universo expressivo”, mas sim constituinte dele: universos expressivos não existem no mundo platônico das ideias, mas no mundo histórico a partir de cujos novos signos e formas eles surjem. Finalmente, a noção de ideia merece um reparo: o que é uma ideia senão um pôr em relação signos, matérias-primas (a rigor, nem sei se isso existe) ou coisas (que são também signos)?
No fundo, o problema de Gullar parece ser um suposto esvaziamento do caráter sensível da obra de arte, em privilégio da “ideia”. Ele observa que a expressão “arte conceitual” é “o contrário da natureza das artes”. Esse é um ponto complexo, mas, seja como for, não o considero aplicável às obras citadas de Abramovic, Nuno ou Hirst: nelas, as ideias são elaboradas por meio do sensível e são inseparáveis dele, irredutíveis ao “conceito”.
No meu entender, a questão que se deve endereçar à arte contemporânea não é a recusa de sua linguagem, mas os resultados artísticos que essa linguagem produz. E isso deve ser feito caso a caso. O maior risco da arte contemporânea é cair numa espécie de heteronomia pura. A expressão soa paradoxal, mas com ela quero me referir às obras que apenas reproduzem o já existente, coincidindo perfeitamente com o mundo. Mas nesses casos o problema não é uma falta de linguagem, e sim uma falta de obra.


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